A Escrita Aljamiada: Uma Ponte Entre os Povos Muçulmanos do passado e do presente
REVISTA MINARETE 25
Antonio Gueiros Bezerra Junior Emir Abu Zainab
2/3/20254 min read


A história da escrita aljamiada está profundamente ligada à identidade dos muçulmanos da Península Ibérica e de diversas partes do mundo. Ao longo do tempo, a adoção do sistema de escrita árabe (abjad), um consonatário em sua origem, por diferentes línguas foi uma prática comum, especialmente em sociedades muçulmanas que falavam idiomas não semíticos. Esse sistema de escrita, que surge da adaptação dos caracteres árabes para registrar línguas não semíticas como o castelhano, o aragonês e o português, é um marco significativo da história dos povos mouros na Península Ibérica. Essa prática foi essencial para a preservação da identidade cultural e religiosa dos muçulmanos ibéricos durante e após a conquista cristã. A criação de um "Aljamiado Português Moderno" e a formação de uma Academia dedicada à sua preservação representam não apenas um resgate histórico, mas uma forma de reafirmar a identidade islâmica entre os falantes de português, criando um elo cultural entre os atuais muçulmanos de língua portuguesa e os povos muçulmanos ibéricos e sua herança islâmica de resistência cultural e religiosa em meio a um ambiente hostil, preservando elementos da língua e da tradição islâmica.
A escrita árabe adaptada
O uso dos caracteres árabes se estendeu muito além da língua árabe, sendo adotados por diferentes povos muçulmanos ao redor do mundo, entre os exemplos mais notáveis que demonstra o caráter flexível e funcional da escrita árabe estão os alfabetos persa, o urdu, o turco otomano, o wolof e o malaio. No caso do persa, o alfabeto árabe substituiu o pálavi após a islamização do Irã, com a adição de novas letras para representar sons específicos dessa língua. O urdu, falado na Índia e no Paquistão, adotou o alfabeto árabe com adaptações para os fonemas característicos dessa língua, e o turco otomano utilizou o alfabeto árabe até 1928, quando a Turquia passou a adotar o alfabeto latino. No wolof, falado na África Ocidental, a escrita árabe foi utilizada para transcrever a língua, assim como no malaio, onde o alfabeto árabe também foi empregado. Da mesma forma, na Península Ibérica, a escrita aljamiada foi uma ferramenta indispensável para os muçulmanos da região, conhecidos como mudéjares e mouriscos, preservarem suas crenças e práticas islâmicas em um contexto adverso. Durante o período de conversão forçada e perseguição, a escrita aljamiada se manteve como um meio clandestino de comunicação e preservação religiosa, permitindo aos muçulmanos praticarem sua fé, escreverem orações e manterem sua cultura viva, embora em segredo.
Estudos medievais David (1897) e Suely (2006)
O surgimento de documentos aljamiados portugueses em Marrocos durante a ocupação portuguesa da costa desse país “Protetorado da Duquela” (1510-1516), regidos por Nuno Fernandes de Ataíde em Safim, foi consequência da necessidade de entendimento entre os mouros de Pazes ou de Sinal que sabiam falar o português, mas não sabiam escrever com o alfabeto latino e os próprios Portugueses, a “aljamiação” de textos portugueses era assim a forma de conseguir comunicar por escrito. Tais estudos realizados por David Lopes em 1897 e por Suely Teixeira em 2006, revelam a importância desses registros para o entendimento da história muçulmana na Península Ibérica. Embora o número de documentos seja limitado, eles são fundamentais para compreender como a escrita aljamiada foi utilizada pelos muçulmanos para se comunicar com autoridades portuguesas e para preservar sua identidade.
A adaptação do árabe ao português, com seus desafios linguísticos, como a ausência de vogais no árabe e a inclusão de sons ausentes, como o "p" e o "v", destaca a engenhosidade dos mouros ao utilizar o alfabeto árabe para registrar sua língua. Esses documentos, além de fornecerem uma janela para a história, mostram como a aljamiada foi uma forma de resistência contra a opressão cultural e religiosa imposta pelo domínio cristão.
Novo aljamiado português
A revitalização da escrita aljamiada portuguesa no século XXI não se trata apenas de uma reconstituição histórica, mas de um movimento para reforçar a identidade muçulmana na comunidade lusófona. Criar um "Aljamiado Português Moderno" e uma instituição dedicada à sua preservação, como a Academia de Escrita Aljamiada, pode ser um passo crucial para o fortalecimento da ligação entre os muçulmanos de idioma português e sua herança islâmica. A Academia poderia promover a pesquisa acadêmica, incentivar a padronização da escrita aljamiada e criar materiais didáticos que facilitariam o aprendizado dessa prática.
Além disso, a revitalização dessa escrita permitirá que novas gerações de muçulmanos de língua portuguesa se reconectem com os textos islâmicos, o que pode contribuir para uma maior compreensão e prática da religião, mantendo viva a tradição de resistência e preservação cultural dos mouros.
Em suma, a escrita aljamiada é uma parte fundamental da história dos muçulmanos da Península Ibérica, sendo um símbolo de resistência cultural e religiosa. Sua preservação e adaptação no contexto moderno não apenas reavivam uma tradição histórica, mas também fortalecem a identidade islâmica das comunidades muçulmanas lusófonas. A criação de um Aljamiado Português Moderno, acompanhado por uma instituição dedicada, como a Academia de Escrita Aljamiada, representa um esforço vital para garantir que a escrita aljamiada não seja apenas uma relíquia do passado, mas um recurso vivo para as gerações futuras. Ao fazê-lo, reforçamos o elo entre o Islã e os povos lusófonos, permitindo que a rica herança cultural dos muçulmanos ibéricos continue a influenciar a comunidade islâmica global.
BEZERRA JR, ANTONIO. Aljamiado Português Moderno. 1ª ed. São Paulo: Clube de Autores, 2020.
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