A FILOSOFIA EM ÁRABE E AS TRÊS ESCOLÁSTICAS : JUDAICA, CRISTÃ E ISLÂMICA

Se a Filosofia na antiguidade clássica teve seu início motivado pelo êxtase do homem diante da natureza, no mundo árabe-muçulmano a Filosofia teve seu início motivado pela perplexidade do homem diante do conteúdo do Livro Sagrado, o Alcorão, revelado ao profeta Muḥammad ao longo de 23 anos de sua vida como Mensageiro de Deus. Texto: Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar - Professor de História da Filosofia Medieval Árabe na Universidade Federal de São Paulo – Campus Guarulhos.

REVISTA MINARETE 25

Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar

1/18/20257 min read

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Se a Filosofia na antiguidade clássica teve seu início motivado pelo êxtase do homem diante da natureza, no mundo árabe-muçulmano a Filosofia teve seu início motivado pela perplexidade do homem diante do conteúdo do Livro Sagrado, o Alcorão, revelado ao profeta Muḥammad ao longo de 23 anos de sua vida como Mensageiro de Deus. Não é o caso (por falta de tempo) falarmos sobre a historicidade deste Livro que é ampla e com dados pontuais importantes. Deve-se, porém, ressaltar que ao ser consagrado pelos muçulmanos como a Palavra de Deus, mereceu por parte deles uma dedicação ao correto entendimento deste Livro Generos ( é uma referência dos muçulmanos ao Alcorão como livro generoso quanto ao conteúdo que oferece).

Foi o início de um amplo movimento cultural que culminou com o descerramento da filosofia da antiguidade clássica, cuja importância perdura até os nossos dias.No entanto, para que isto ocorresse, os árabes se empenharam nas traduções ao Siríaco, num primeiro momento e ao árabe, em definitivo, de obras filosóficas da antiguidade clássicacom ênfase às de Platão e Aristóteles, Hipócrates, Galeno e Euclides. O primeiro filósofo do mundo islâmico a ter este contato foi Al-Kindῑ(796-873). Apesarde não ser muito citado, foi quem construiu as primeiras bases da reflexão filosófica no mundo árabe-muçulmano; tentou transformar um pensamento religioso em pensamento racional.

Porém, houve um fato novo e de significativa importância para o rumo da história do pensamento filosófico: o surgimento da Casa da Sabedoria (Bayt al-Ḥikma) em Bagdá, fundada em 830 pelo califa Abássida al-Ma’mūn (que governou de 813 a 833), seguindo o mesmo caminho do pai, Harūn al-Rašῑd que foi entusiasta da divulgação e do incentivo à cultura nesta região. É muito provável que durante seu califado tenho sido traduzidos O Almagesto de Ptolomeu e Os elementos de Euclides.

Al-Ma’mūn trouxe para esta Casa os mais eminentes eruditos da época e de diferentes religiões. O amor que ele tinha pela sabedoria superou todas as diferenças de raça e doutrina religiosa. Não tardou muito e iniciou-se o delicado trabalho de tradução ao árabe de obras do grego, do persa e até do sânscrito. Um fato que merece destaque é que esta Casa reuniu eruditos e tradutores de todos os credos; o importante era a competência; haja vista que, no século IX, o mais destacado tradutor do grego ao árabe pertencente à Casa durante o governo de al-Ma’mūn foi o cristão Ḥunayn Ibn Isḥāq. É um exemplo de como a aquisição da cultura deve superar a diferença com a relação ao outro. Ahl al-Kitāb, isto é, o povo do livro ( judeus e cristãos ) e mesmo de religiões consideradas pagãs pelos muçulmanos eram bem-vindas neste centro de desenvolvimento científico e intelectual. À família Isḥaq as traduções de textos para o árabe devem muito; pois o filho de Ḥunayn - Isḥāq Ibn Ḥunayn – (m. em 911) e seu primo Ḥubayš também foram tradutores.

O fruto da Casa da Sabedoria, - as traduções filosóficas e científicas ao árabe- serviu de subsídio para a filosofia, teologia, astronomia, medicina, matemática, dentre outras, para o medievo ocidental como ponto de partida para as traduções ao latim. Os Abássidas construíram , de fato, uma civilização resplandecente.

A filosofia árabe, ou em árabe, se desenvolveu e, com ela, surgiram grandes filósofos como Al-Fārābī (872-950) , Avicena (Ibn Sīnā 980-1037), Averróis (Ibn Rušd 1126-1198), dentre outros. Aqui nos limitaremos apenas a Avicena. Nascido na antiga Pérsia sob domínio árabe, foi um dos mais importantes eruditos do mundo islâmico. Sua produção intelectual nos deixou mais de duas centenas de obras entre as quais obras célebres em Filosofia e Medicina. Além de sua reputação como filósofo, também foi médico famoso não só pelo conhecimento que tinha Medicina , mas também, por sua dedicação e amor aos enfermos. Para ele, “A Medicina é uma ciência fácil”.

Duas obras merecem ser mencionadas pela relevância tanto no Oriente como no Ocidente: Kitāb al-Šifā’ (O livro da Cura) e O Cânon de Medicina ( Al-Qanūn fi al-Tibb). Não se coloca em dúvida que estes escritos, juntamente com outros autores, foram fundamentais na formação da cultura ocidental. O Cânon, por exemplo, foi imprescindível nas faculdades de medicina européias até o final do século XVIII. (Não vem ao caso entrar em detalhes históricos e bibliográficos).

Limito-me aqui à citação de uma obra chamada A Origem e o Retorno (Al-Mabda’ Wa al-Ma‘ād), elaborada por Avicena quando ele tinha cerca de 21 anos de idade. Neste trabalho ele expõe sobre as características do Ser Necessário por si, ser necessário por outro e o ser possível, ou contingente; ele a dividiu em três tratados, a saber: tratado I - Sobre a confirmação do princípio primeiro do todo (al-kull – o universo), sua unicidade e a enumeração de seus atributos.

Tratado II – Sobre o grau da emanação da existência a partir de sua existência, iniciando com a primeira existência e partir dele até a última existência após a primeira.

Tratado III – Indicação sobre a permanência da alma humana, a felicidade última e verdadeira, que é uma certa felicidade e outra felicidade não-verdadeira; sobre o infortúnio verdadeiro e último, que é um certo infortúnio, e outro infortúnio não-verdadeiro.

O seu objetivo com esta obra ele mesmo relatou:

“Procuro nestes tratados esclarecer o que tornaram obscuro, revelar o que esconderam e ocultaram, reunir o que dispersaram, desdobrar o eu reuniram na medida da limitada capacidade que é como a minha e de alguém que está aflito pela extinção da época dos sábios, pelo desvio da preocupação com os vários objetivos da sabedoria, pelo predomínio do ódio sobre alcançou uma parte da realidade, pelo cansaço da violência e pelo exílio, em comparação com os que, como eu, examinam com a mesma aflição eu a minha e com os que foram forçados às desgraças do tempo às quais eu fui impelido.Que Deus nos ajude; Nele está a mediação e o poder”.

Inicia afirmando que o ser necessário é aquele que, quando suposto inexistente, decorre daí um absurdo; e o ser possível é o que quando suposto inexistente ou existente,não decorre daí um absurdo.

O ser necessário é necessário (imprescindível); e o ser possível não é necessário, tanto no ser como no não-ser. É isto que queremos significar aqui com ser possível.

E ainda: o ser necessário pode sê-lo por si mesmo ou não; e o ser necessário por si mesmo é o que é por si, não por outra coisa, seja o que for; torna-se absurdo não supô-lo.

E o ser necessário não por si é aquilo que, quando se supões alguma coisa que não seja ele, torna-se ser necessário; como o número quatro é necessário não por si, mas quando se supões dois mais dois.

Como pode-se notar, Avicena estabelece aqui os conceitos de ser necessário por si, ser necessário por outro e de ser possível.

Este conceito aviceniano do ser como necessidade prevaleceu nos estudos da metafísica medieval, e foi a base da escolástica judaica, cristã e muçulmana e por intermédio desta metafísica, este conceito foi transmitido à metafísica moderna e contemporânea.

Na era moderna o conceito do ser como necessidade foi sustentada por Espinosa e por Hegel.

Para Espinosa o ser de Deus está na necessidade e o ser das coisas está na necessidade com que derivam da substância divina ( Et., I, 8, scol. II). Hegel, por sua vez, afirmou no seu aforismo mais destacado que “O que é racional é real; e o que é real é racional”. (Então), a racionalidade do real é a sua necessidade. ( aqui caberia mais explicações, mas não é o nosso foco). ( toda a filosofia de Hegel é para mostrar a necessidade das determinações do ser ; como o ser é na sua realidade.

Voltando à questão das traduções:

No século XII em Toledo – Espanha – surgiu a primeira escola de tradutores do árabe para o latim fundada, ou iniciada, por D. Raimundo, um monge Francês que foi arcebispo de Toledo de 1126 a 1151. Toledo é a Tulaytula dos árabe, Tolétho dos moçarabe, Toldoth dos judeus e Toletum dos latinos.

O motivo do interesse de D. Raimundo pela tradução do árabe ao latim foi a sua percepção da importância das obras dos filósofos árabes para compreensão da filosofia de Aristóteles. Assim então, D. Raimundo decide mandar traduzir as obras do estagirita para o latim. Muitos tradutores fizeram parte nas traduções; a mais importante participação foi a de Domingos Gundislavo ( Dominicus Gundisalvi). O Kitāb al-Šifā’ foi traduzido por ele. De Al-Fārābī traduziu O Recenseamento das Ciências (Iḥṣā’ al- ‘Ulūm e, ainda,a famosa obra de Al-Ġazāli As intenções dos filósofos (Maqāsid al-falāsifa). Para esta tarefa, Gundislavo precisou do auxílio de tradutores judeus e muçulmanos que conheciam bem o árabe. Dos tradutores judeus um nome que se destacou é o de Johannes Ben Davi ou (Johannes Hispanus, Johannes Avendeath).

No entanto, o nome de maior destaque foi o de Gerardo de Cremona (1114-1187). Impressionado com os livros de filosofia e ciências disponíveis em árabe, ele aprendeu o árabe e traduziu deste ao latim cerca de 68 obras, incluindo o Almagesto de Ptolomeu ( a tradução ficou definitivamente pronto em 1175), obras de Aristóteles, de Al-kindῑ, Avicena, Galeno e de Isaac Israeli.

O ofício da escola de tradutores de Toledo deve ser considerado como trabalho coletivo de árabes muçulmanos, de judeus e de cristãos latinos. Às vezes, algumas obras traduzidas traziam o nome de apenas uma pessoa. Na minha opinião esta situação é um “acidente filosófico, adorno filosófico chamado vaidade”.

Se o século XIII é conhecido como o século áureo da teologia e da filosofia, um dos motivos é o legado das traduções de obras até então desconhecidas no ocidente. Se Avicena influenciou pensamentos como o de Moisés de Maimônides (1135-1204), Tomás de Aquino, Alexandre de Hales , São Boaventura e Duns Escoto e, se o pensamento árabe influenciou Ibn Gabirol (1021- 1050 ou 70) ou Avicerbon dos latinos que escreveu em árabe sua obra mais estudada pelos escolásticos - Fons Vitae – e de Moisés Maimônides que também escreveu em árabe uma de suas mais significativas obras – Guia dos Perplexos - , isto mostra o quanto as três grandes religiões monoteístas , as três escolásticas conviveram na paz da filosofia e de sua dialética (mesmo que tenha havido divergências doutrinais).

A tolerância e o afeto dos muçulmanos por judeus e cristão na Península Ibérica permanece até hoje como paradigma de vida que deve ser seguido.