A Justiça dos Companheiros

Um tema sensível e importante para todos os fiéis é a posição que os companheiros do Profeta Muhammad (s.a.a.s) ocupam perante Deus e a Ummah (comunidade islâmica). Em realidade, pode-se dizer que a polêmica existente em relação ao assunto pode até ser considerada uma espécie de tabu.

REVISTA MINARETE 23RELIGIÃO

João Maluf

9/14/20246 min read

Um tema sensível e importante para todos os fiéis é a posição que os companheiros do Profeta Muhammad (s.a.a.s) ocupam perante Deus e a Ummah (comunidade islâmica). Em realidade, pode-se dizer que a polêmica existente em relação ao assunto pode até ser considerada uma espécie de tabu. Digo tabu sem intenção sectária ou tendência alguma. Tabu no sentido de que há basicamente uma restrição imposta sobre discussões pertinentes aos companheiros, não sendo possível muitas vezes questionar e refletir de maneira crítica os comportamentos e práticas por eles transmitidas. Essa reflexão, se for de fato para a busca da verdade em luz ao Alcorão e a Sunnah, sem dar ouvidos ao sectarismo e qualquer espécie de intolerância, deveria ser bem aceita por todos os muçulmanos. Deus pediu aos seres humanos que refletissem sobre a existência humana. No versículo de número 21 do capítulo Adh-Dhariyat, é apontado que há sinais na Terra para aqueles que têm fé. Além disso, durante todo o Alcorão há referências à História humana indicando a necessidade de se refletir sobre o passado e seus acontecimentos. Por isso, a existência desses tabus devem ser questionados, visando unicamente a pesquisa, reflexão e aprendizado. Neesse sentido, vale a reflexão sobre o Adāla dos Ṣaḥāba (árabe: عدالة الصحابة ), que pode ser traduzido como a "Justiça dos Companheiros," o qual refere-se à crença na integridade moral e na retidão dos Companheiros do Profeta Muhammad no Islã. Visando incentivar o diálogo, a coexistência e respeito entre as duas escolas islâmicas, irei apresentar brevemente o que os sábios sunitas e xiitas discorreram sobre o assunto para que assim uma parte desse tabu possa começar a se desfazer para o leitor.

Segundo a visão predominante entre os estudiosos sunitas, todos os Companheiros do Profeta são vistos como justos e confiáveis. Esta posição é amplamente aceita e defendida como um consenso (ijma) na tradição sunita. O renomado estudioso sunita, Ibn Hajar al-'Asqalani, afirmou que esta crença na justiça de todos os Companheiros é uma questão de consenso. Ou seja, a maioria esmagadora aponta para esse caminho. Ele também menciona que os que discordam dessa visão são considerados hereges. Essa teoria está baseada na interpretação de alguns versículos e tradições do Profeta. Vale lembrar que para uma análise séria de uma aya ou de um hadith é preciso anos de estudos de diferentes conhecimentos islâmicos, por isso, reitiro o compromisso de apenas introduzir o tema e mostrar que a porta está aberta aos que pesquisam aprender, sem querer propor interpretações novas e exclusivas. De qualquer forma, com base nessa teoria, não é permitido criticar ou se opor aos Companheiros do Profeta Muhammad, especialmente pelo famoso Versículo de Ridwan:

"Com efeito, Allah Se agradou dos crentes, quando te juraram fidelidade, sob a árvore. E Ele soube o que havia em seus corações, então, fez descer a tranquilidade sobre eles e os recompensou com uma vitória iminente." (Alcorão 48:18).

Este versículo se refere ao Juramento de Ridwan, segundo os que acreditam nessa perspectiva, foi um evento em que os Companheiros juraram lealdade ao Profeta sob uma árvore, durante a Trégua de Hudaybiyyah. A interpretação comum entre os estudiosos sunitas é que este versículo demonstra a aprovação divina dos Companheiros envolvidos, indicando sua justiça, sinceridade e compromisso com a fé. Assim, os Companheiros são considerados exemplos de conduta islâmica e fontes confiáveis de ensinamentos.

Em contrapartida, os sábios xiitas rejeitam a teoria da justiça dos Companheiros sem exceção, tratando-os da mesma maneira que tratam outros muçulmanos. Ou seja, baseado em suas ações e fé, sem isenção exclusiva com base em um título. Embora algumas qualificações e condições foram acrescentadas a essa definição para classificar os que recebiam o título de Sahaba, como o fato de ter memorizado ahadiths, ter lutado ou sido martirizado ao lado do Profeta e etc. É importante notar que,no Alcorão, Deus nunca concedeu imunidade aos Companheiros ou algum grupo específico e nem impediu que outros os criticassem. As ações no Islã, segundo a perspectiva xiita é com base na fé e atos. Afinal, se assim não fosse, a crença na justiça divina estaria comprometida e não é preciso versículos ou hadith para entendermos isso. Justamente por isso, alguns estudiosos acreditam que a teoria da justiça dos Companheiros foi proposta para justificar o califado dos três primeiros califas e legitimar o governo de Mu'awiya b. Abi Sufyan. Isto é, um produto das questões históricas que a comunidade islâmica experimentava após a morte do Mensageiro de Deus (saas). É importante termos em mentes algumas das evidências teóricas para essas conclusões:

‘’Quando os hipócritas vêm a ti, dizem: 'Testemunhamos que tu és o Mensageiro de Deus.' Deus sabe que tu és o Seu Mensageiro, e Deus testemunha que os hipócritas são mentirosos’’ (63:1).

Esse versículo indica que entre os que estavam na companhia do Profeta, havia hipócritas que não eram sinceros em sua fé. O Profeta Muhammad disse:

"Alguns dos meus Companheiros serão trazidos até mim no Tanque (no Dia do Juízo), e eu os reconhecerei. Então, eles serão levados para a esquerda, e eu direi: 'Meus Companheiros!' Será dito: 'Você não sabe o que eles fizeram depois de você’’ 1.

Embora os intelectuais islâmicos divirjam sobre o tema da justiça dos Companheiros (Adāla al-Ṣaḥāba), o debate gerou duas abordagens distintas que moldaram a compreensão histórica e teológica do Islã. Essas duas portas, que representam as perspectivas sunita e xiita sobre o tema, permanecem abertas até o Dia do Juízo (Yawm al-Qiyamah). A visão sunita, baseada na aceitação da justiça inquestionável de todos os Companheiros, é fundamentada em uma interpretação de consenso e preservação da integridade das fontes primárias do Islã. Em contraste, a perspectiva xiita questiona essa justiça universal, sustentando que nem todos os Companheiros foram justos e que o estudo crítico (al-jarh wa l-ta'dil) deve ser aplicado a eles, assim como a qualquer outro muçulmano, para entender melhor a veracidade dos hadiths e das tradições.Essas divergências, embora profundas, não são razões para desunião entre os muçulmanos. Pelo contrário, elas devem ser vistas como oportunidades para o crescimento intelectual, espiritual e ético dentro da comunidade islâmica. Cada escola de pensamento busca, em sua essência, compreender melhor o Alcorão e a Sunnah e aproximar-se da verdade que eles contêm. Portanto, é fundamental que os muçulmanos abordem essas diferenças com respeito, misericórdia e tolerância. O Profeta Muhammad (s) ensinou que a misericórdia e a bondade para com o outro são qualidades essenciais de um verdadeiro crente, e é com base nesses princípios que devemos interagir uns com os outros. Em vez de alimentar o sectarismo e a discórdia, os muçulmanos são chamados a reconhecer e a respeitar a diversidade de opiniões que existe dentro da Ummah (comunidade islâmica). Quando apropriado, deve-se buscar aprender sobre as diferentes perspectivas e, à luz do Alcorão e da Sunnah refletir sobre qual delas faz mais sentido e promove a justiça, a sabedoria e a harmonia. Em um mundo em que a polarização pode dividir sociedades e comunidades, os ensinamentos do Islã nos lembram da importância da unidade e do respeito mútuo, encorajando um diálogo sincero que reflete os valores centrais da fé. Assim, as duas portas da interpretação sobre a justiça dos Companheiros permanecerão abertas, oferecendo um convite contínuo ao estudo, à reflexão e ao diálogo até o último dia. Cabe aos muçulmanos, com corações abertos e mentes esclarecidas, caminhar por esses caminhos de conhecimento com humildade e empatia, reconhecendo que, apesar das diferenças, todos buscam agradar a Deus e seguir o exemplo do Profeta Muhammad (s) na busca pela verdade e pela retidão.

1Este hadith aparece em Sahih al-Bukhari, uma das coleções de hadiths mais autênticas na tradição sunita. É narrado várias vezes em diferentes contextos. Um exemplo é encontrado no Livro 76: Kitab al-Riqaq (O Livro da Amenização do Coração), Hadith número 578.

O Autor:João Maluf

Mestrando em História