ESPIRITUALIDADE ISLÂMICA E RESPONSABILIDADE NA SOCIEDADE ATUAL

Resumo da palestra no Seminário Permanente de Estudos Islâmicos

REVISTA MINARETE 21

Imam Abdul Aziz Kabre

5/9/202413 min read

O Profeta ocupa um lugar único na consciência e na vida dos muçulmanos em todo o mundo. Ele é o nosso modelo, o nosso exemplo a ser seguido e a nossa bússola no caminho que leva a Allah:

"Certamente, no Mensageiro de Allah tendes um excelente exemplo para aqueles que esperam em Allah e no Dia do Juízo" (Alcorão 33/21).

O profeta Muhammad (SAW) era habitado pela consciênciosidade em Allah e imbuído de Sua presença. Ele viveu somente por meio de Allah para Allah. Apesar da escala, às vezes estonteante, das adversidades que enfrentava constantemente, das batalhas que tinha de travar contra seus inimigos, das exigências de seus companheiros, a quem tinha de ajudar, orientar e, às vezes, defender, e apesar de todas as suas outras muitas e variadas ocupações, ele encontrava tempo para passar parte de suas noites não descansando, mas chorando e meditando em oração.

O Profeta Muhammad (SAW) era profundamente ligado à paz. O Profeta Muhammad (SAW) era infinitamente gentil e carinhoso. Ele era elegante, cortês, acessível, de mente aberta, natural, acolhedor e benevolente. O profeta Muhammad respeitava muito a diversidade religiosa, que o Alcorão considera uma vontade divina.

É por todos esses motivos que devemos amar o Profeta (saw) mais do que a nós mesmos. Esse amor, considerado um ato de adoração, nos permite dar sentido a nossa vida, lutar diariamente contra as forças mais negativas em nosso ser e viver em paz com os outros, muçulmanos ou não, crentes ou não. Seu exemplo é uma bússola para nossas ações diárias, especialmente quando elas são tomadas em nome do Islã. Daí o nosso tópico de debate "ESPIRITUALIDADE ISLÂMICA E RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES DE HOJE".

O QUE É ESPIRITUALIDADE MUÇULMANA?

O QUE É RESPONSABILIDADE?

QUE RESPONSABILIDADES OS MUÇULMANOS TÊM EM UMA SOCIEDADE PLURAL?

Perguntas que serão abordadas no restante da comunicação. inshaAllah

I. ESCLARECIMENTO CONCEITUAL

1. ESPIRITUALIDADE ESPIRITUALIDADE ISLÂMICA E RESPONSABILIDADE NA SOCIEDADE ATUAL

A espiritualidade é essencialmente uma transformação do sujeito. Essa transformação exige que trabalhemos em nós mesmos, usando exercícios e uma forma de treinamento. Ela gera uma certa qualidade de ser que é o índice do conhecimento espiritual. É necessária uma mudança no sujeito para atingir esse objetivo, que consiste em um retorno completo à interioridade. Ao mesmo tempo, esse retorno ao “eu” supera o ego e o abre radicalmente para a alteridade. Esse jogo duplo de interior e exterior envolve todo o ser e, em última análise, aplica-se à totalidade da existência. 

Duas regras podem ser facilmente extraídas de uma leitura cuidadosa das aayaats do Alcorão e dos ditos proféticos.

A primeira é que o foco da fé é o coração. Esse não é o músculo que faz o sangue circular no corpo, mas o eu interior iluminado pela certeza da verdade de Allah.

A segunda regra é que essa fé nunca está em um estado estável. Ela aumenta e melhora por meio de atos de adoração e diminui e enfraquece por meio do descuido e da desobediência a Allah.

Portanto, o coração, que é a morada da fé, deve ser o objeto de nosso maior cuidado. Como a fé é instável, devemos estar atentos para garantir que nosso capital espiritual não diminua abaixo do limiar de perigo. Isso só pode ser alcançado por meio de esforço constante. Não temos espaço suficiente neste texto para analisar as centenas de passagens do Alcorão e os ditos proféticos que nos convidam a considerar a educação espiritual como nossa principal preocupação, na verdade, o projeto essencial de toda a nossa vida. É de acordo com o estado de nosso coração que nosso destino final será determinado perante Allah. É também o estado desse coração que define nossa atitude, nossas ações e todo o nosso comportamento neste mundo.

É importante estar ciente das qualidades que caracterizam a espiritualidade no Islã, especialmente porque esse termo é muito usado em outras culturas. Essas qualidades estão agrupadas em dois princípios: Conformidade, por um lado, e totalidade e equilíbrio, por outro. É essencial, ao falar sobre educação espiritual, afirmar e reafirmar que qualquer abordagem nessa direção deve estar em total conformidade com o modelo do Profeta. O Mensageiro de Allah é o homem mais perfeito e completo moral e espiritualmente. Ele é o melhor guia no caminho para Allah.

O desenvolvimento espiritual do crente deve primeiro impulsioná-lo aos níveis mais elevados de fé e presença com seu Senhor; depois, incentivá-lo a nutrir regularmente seu intelecto com conhecimentos e habilidades úteis para sua comunidade. Por fim, esse mesmo desenvolvimento organizará suas ações de modo que sua participação e suas qualidades relacionais sejam dignas de um crente que busca a satisfação de Deus.

2. RESPONSABILIDADE

Responsabilidade no Islã significa a responsabilidade natural que Allah, o Todo-Poderoso,  concedeu ao homem para que ele possa aplicar as recomendações de Allah nas coisas que dizem respeito a sua religião, a sua vida aqui embaixo e, mais precisamente, às coisas que, quando ele as fizer, será recompensado por Allah. Por outro lado, se ele as negligenciar, será punido pelo Todo-Poderoso.

A responsabilidade é fundamental para o Islã: Allah diz no Alcorão: "Vou colocar uma pessoa responsável na Terra".

O seguinte hadîth é muito explícito: "Cada um de vocês é um pastor e cada um de vocês é responsável por seu rebanho. Assim, o Imam é um pastor responsável por seu rebanho, o homem é um pastor em sua família, responsável por seu rebanho, a mulher na casa de seu marido é uma pastora, responsável por seu rebanho, o empregado é um guardião de seu contrato, responsável pelo que ele guarda".

II. A RESPONSABILIDADE DO MUÇULMANO COM SUA FAMÍLIA

Quanto à responsabilidade da pessoa em sua família, "o Homem é um pastor em sua família e responsável pelo objeto de seus cuidados". Isso consiste, em primeiro lugar, em fornecer-lhe sustento e protegê-lo da privação. No Dia da Ressurreição, ele será responsável por ela; daí a necessidade de usar os melhores meios legais e garantir a sua família uma vida honrada.

Outra de suas responsabilidades é orientar e direcionar sua família para a obediência e adoração a Allah, e iniciá-los nos dogmas e regras de cortesia do Islã. O objetivo é buscar a satisfação e a misericórdia de Allah e proteger sua família do castigo do fogo na vida final. Allah exaltado diz:

"Ó fiéis! Protegei a vós mesmos e a vossas famílias de um fogo cujo combustível são os seres humanos e os escombros. (S66 V6)

III. RESPONSABILIDADE NA SOCIEDADE

Os seres humanos são seres sociais. A vida se baseia na interação e na comunicação entre as pessoas. Elas compartilham muitas coisas e é em conjunto que formam a família e a sociedade. Os seres humanos nascem sozinhos para viver em harmonia com os outros.

Allah, o Todo-Poderoso, diz no Alcorão (de acordo com a tradução do significado): "Ó seres humanos! Nós vos criamos de um macho e de uma fêmea, e vos dividimos em nações e tribos, para que vos conheçais uns aos outros. O mais nobre de vós, para Allah, é o mais piedoso. De fato, Allah é Onisciente e Prudentíssimo" (Alcorão 49/13).

Para vivermos em harmonia e trabalharmos juntos, Allah, o Todo-Poderoso, estabeleceu regras e leis (referentes a todos os aspectos da vida) para facilitar as relações entre as pessoas. Essas regras determinam com precisão os direitos do indivíduo de acordo com sua posição, seu status e a totalidade de suas características. No Islã, o indivíduo é honrado com direitos especiais como filho, pai, irmão, irmã, jovem, idoso, parente, vizinho e assim por diante. Todos os seres humanos são iguais aos olhos de Allah, mas o mais honrado é aquele que adota o melhor comportamento (ou seja, se comporta para agradar a Allah). Portanto, em geral, não há discriminação entre as pessoas. A única distinção é baseada na crença e nos atos piedosos. No Islã, os seres humanos são estimados e respeitados simplesmente por serem humanos.

Os direitos humanos têm um status muito elevado no Islã. Violar esses direitos significa demonstrar falta de vontade de aceitar as leis e regras de Allah, ser injusto com as pessoas (esse pecado não é apagado a menos que seja perdoado pela pessoa que sofreu a injustiça) e falta de harmonia e paz. O verdadeiro muçulmano se distingue por amar seus amigos e irmãos em nome de Allah; um amor que não é poluído por interesses ou motivos mundanos.

Allah, o Todo-Poderoso, diz em um hadith Qudsi (um dito de Allah não revelado no Alcorão): "Meu amor é devido àqueles que se amam por Minha causa, que gastam por Minha causa e àqueles que se visitam por Minha causa" (Imam Malik).

IV. RESPONSABILIDADE DO DA (AQUELE QUE CHAMA PARA O ISLÃ)

Convidar outras pessoas a se aproximarem de Allah, exaltado seja, e do Islã não requer um relacionamento com Allah, exaltado seja, invocando-O e pedindo Sua ajuda? Como Allah, exaltado seja, diz ao falar em nome de Seu profeta Chu'ayb, (a.s): "[...] Ó nosso Senhor, decide pela verdade, entre nós e nosso povo, pois Tu és o melhor dos juízes." (Alcorão 7/89) Isso não incentiva as pessoas a se ajudarem, a cooperarem e a trabalharem juntas? Como Allah, exaltado seja, disse, falando em nome de Seu profeta Musa (Moisés) (a.s):

"Mas Arão, meu irmão, é mais eloquente do que eu. Portanto, envie-o comigo como um ajudante, para declarar minha veracidade: temo, de fato, que eles me chamem de mentiroso". (Alcorão 28/34)

Isso não requer força de vontade e perseverança? Como Allah, exaltado seja, diz: "Instituímos para cada comunidade um conjunto de ritos que ela deve observar. Então, que eles parem de discutir com você sobre a ordem que receberam! Em vez disso, implorem ao seu Senhor, pois vocês estão no caminho certo." (Alcorão 22/67)

Isso não exige a adesão aos valores morais e a firmeza? Como Allah, exaltado seja, diz: "Convocai (as pessoas) para isso; mantende-vos firmes, como vos foi ordenado; não sigais as suas paixões [...]" (Alcorão 42/15).

Isso não requer passos graduais, facilitação, esperança e otimismo? Como o Profeta (saw) disse: "Facilite as coisas para as pessoas, não as torne difíceis, tranquilize-as com boas notícias e certifique-se de que elas não sintam repulsa por você". (Bukhari e Muslim).

Isso não requer continuidade (no esforço) e dedicação? Como Allah, exaltado seja, diz em nome de Seu Profeta Noh (Noé) (a.s): "Ele disse: 'Senhor! Eu chamei meu povo noite e dia. (Alcorão 71/5)

Isso não requer sabedoria? Como Allah, exaltado seja, diz: "Não injurieis aqueles que eles invocam em vez de Allah, porque, por agressão, eles injuriariam Allah em sua ignorância [...]" (Alcorão 6/108).

Isso não requer diálogo? Como Allah, exaltado seja, diz (significado do versículo): "[...] E discutam com eles da melhor maneira [...]" (Alcorão 16/125)

Isso não requer explicação e esclarecimento? Como Allah, Exaltado seja, diz: "Ó povo meu, por que vos chamo à salvação, quando me chamais ao fogo" (Alcorão 40/41)?

Isso não requer encorajamento e motivação em vez de intimidação? Como Allah, exaltado seja, diz em nome de Seu profeta Noé (a.s): "Eu disse: 'Implorai o perdão de vosso Senhor, pois Ele é o Grande Absolvedor '.” (Alcorão 71/10)

A alma também precisa de tudo o que explicamos acima. A conclusão é que aqueles que convidam outras pessoas para o Islã usam meios que permitem que elas também se desenvolvam. Dessa forma, ele convida os outros e, ao mesmo tempo, educa a si mesmo.

V. RESPONSABILIDADE COLETIVA: entre o compromisso associativo e a jornada espiritual

No mundo associativo, ou simplesmente entre as pessoas que afirmam promover o Islã, muitas  vezes surge uma amarga realidade: a miséria espiritual, a insuportável desconexão, a decepção e a exaustão de muitos de nossos irmãos e irmãs, no fim de suas amarras depois de meses ou anos de trabalho islâmico incansável, que, infelizmente, não foram acompanhados por uma vida real do coração e uma verdadeira evolução espiritual.

A realidade que escondemos é que agora alguns de nossos irmãos e irmãs existem apenas por meio de uma presença pública, uma vida de associações e ativismo, uma agenda de compromissos, e sofrem com a falta de uma vida espiritual íntima, de momentos de "privacidade" espiritual. Os grandes eventos espirituais e os eventos do coração estão desaparecendo gradualmente: os "preciosos minutos da noite" e seu último terço, os jejuns de segunda e quinta-feira, o Ramadã e os últimos dez dias de retiro, o Alcorão e as cinco orações, a lembrança de Allah e a oração sobre o Profeta, que a paz e a salvação estejam com ele, a presença na mesquita e o fundamento da fé...

Gradualmente, acabamos perdendo esses marcos de luz que enraízam os fiéis no solo da piedade e viramos as costas para essa agenda profética, afundando em um ativismo exaustivo e em um compromisso sem alma! Se o apego à Espiritualidade parece óbvio e até reivindicado por todos, o que é uma conquista considerável, devemos admitir que os "fatores de erosão" acabam triunfando sobre as intenções originais que motivaram nossos primeiros passos em direção ao Islã!

A natureza do compromisso militante e a definição profunda da dinâmica associativa muçulmana são questões que merecem ser abordadas em profundidade.

De fato, esse mal-estar, às vezes esse mal-estar e esse vazio espiritual, não são simplesmente o resultado de um afrouxamento do coração ou da ausência de um discurso espiritual que lembre a todos de suas responsabilidades individuais nessa área. Essa análise reduziria o problema a uma dimensão individual. No entanto, a explicação para essa lacuna está, acima de tudo, no significado que os jogadores dão coletivamente ao trabalho islâmico, na direção que atribuem a ele e no ambiente que consegue oferecer a si mesmos e a todos esses jovens muçulmanos sedentos de espiritualidade.

Essa é uma questão coletiva e uma responsabilidade coletiva que deve voltar ao topo de nossa agenda. A situação é particularmente triste: aos jovens em busca de uma grande espiritualidade e de uma jornada do coração está sendo oferecido um compromisso com associações, desafios sociais a serem assumidos, vigilância cívica a ser desenvolvida e um despertar político a ser aprofundado. 

Minha declaração não é um convite para fugir do mundo ou para se resignar diante dos "desafios da história", porque a espiritualidade muçulmana também é um testemunho, uma presença, uma resistência no coração da luta, uma preparação permanente para uma vida a serviço da humanidade e entre os homens. Pelo amor de Allah!

O modelo do Profeta e de seus companheiros não representa um projeto individual de salvação que seja indiferente à condição humana. Harmonizando alta espiritualidade e participação ativa, esse modelo é a ilustração majestosa do caminho duplo que combina projeto individual e trabalho coletivo, que integra o projeto de salvação coletiva como testemunho e participação no projeto de salvação individual como a busca por Allah e a busca por Ihsan (boa ação).

Uma leitura cuidadosa do Modelo Profético, que a paz e a salvação estejam com ele, é necessária para se conscientizar desse equilíbrio, dessa verdadeira compreensão das prioridades, bem como para descobrir o segredo e os princípios da educação espiritual à maneira do Profeta, que a paz e a salvação estejam com ele.

Conclusão

A espiritualidade não é algo que possa ser improvisado, não é uma questão de programas e cursos de treinamento, nem é uma questão de diversão cultural e "nomadismo" em fóruns, congressos e colóquios...

No entanto, uma grande proporção de jovens muçulmanos sinceros e motivados ainda não tem respostas sobre como devem seguir em sua jornada. Eles sofrem com a falta de visibilidade sobre as questões de espiritualidade e educação. Daí o vazio espiritual, as grandes decepções e os excessos de alguns desses jovens. Precisamos de muita clareza para que a visão do nosso Islã, da nossa espiritualidade, da nossa participação e do nosso projeto global não seja obscurecida. A educação espiritual não é algo que possa ser improvisado; para todo aspirante a Allah, ela deve ser um projeto de longo prazo, um projeto de vida, uma busca constante que siga um método autêntico, vise a objetivos claros, exija condições e se apóie em fundamentos.

O que acontece com cada um de nós após a morte e nosso lugar com Allah são questões importantes e sérias demais para serem satisfeitas com ideias vagas e superficiais. Precisamos escapar da monotonia do barulho do mundo, da pressa de uma vida superficial centrada neste mundo e do tumulto das leituras culturais, literalistas e "militantes" do Islã.

Meditar profundamente sobre o exemplo do Profeta, que a paz esteja com ele, é o estágio preparatório para a elaboração de um projeto, a escolha de um método e a execução de um programa. Redescobrir o segredo de sua educação é uma condição sine qua non para entrar nas esferas do "iman" e do "ihsan", para empreender a jornada rumo a Allah, rumo aos picos mais altos da fé com um passo seguro e determinado.

Precisamos fugir com inteligência, mantendo-nos vigilantes, do ditame das urgências do momento e reservar um tempo para que, contra a maré, cada um de nós olhe para si mesmo e reflita sobre o estado de seu coração e seu relacionamento com o Senhor. O compromisso na frente externa não deve ser em detrimento do esforço que deve ser feito na frente interna. O investimento na salvação coletiva só pode ser considerado um esforço para Allah quando é feito em nome e em continuidade com a verdadeira busca por Allah e a busca por Seu amor.

A mensagem espiritual do Islã é um desafio tanto para a vontade quanto para o intelecto. Para ser transmitida e compreendida, ela exige uma curiosidade do coração, uma predisposição à mudança e uma sede de Allah. O primeiro passo em direção a Allah para qualquer candidato às esferas do iman e do ihsan é custoso.