Sistemas de Gestão de Recursos Hídricos no Mundo Islâmico Medieval

REVISTA MINARETE 25

Mansour Salum

2/5/202511 min read

water flowing on brown hill
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### Gestão de Recursos Hídricos no Crescente Fértil e Contribuições Islâmicas

No que diz respeito aos recursos hídricos e seu uso, as sociedades do Crescente Fértil destacam-se historicamente pelo surgimento de uma série de impérios ribeirinhos, como a Mesopotâmia, situada entre os rios Tigre e Eufrates, a Anatólia, com os Bizantinos, e o Norte da África, no Vale do Rio Nilo. A gestão desses recursos hídricos, sua disponibilização para irrigação e plantio, assim como para usos higiênicos, como a instituição de banhos públicos, como se via em Roma e nas cidades-estado gregas, era amplamente necessária (HOURANI, 2006).

Diante do fato de que as principais sociedades do Oriente Próximo tinham modelos próprios de uso das águas disponíveis, com o surgimento e crescimento da civilização islâmica a partir da Península Arábica, esses modelos precisaram ser melhorados e reformulados. Isso se deu em resposta ao crescimento demográfico e à centralização política trazida pelos muçulmanos. O alto grau de intercâmbio cultural nesse período, entre a Ásia, o Norte da África, o Mediterrâneo e o Oriente Médio, resultou em um significativo desenvolvimento de técnicas de irrigação, como o qanat (canal subterrâneo, desenvolvido na Pérsia) e a nora (roda d'água), que foi desenvolvida principalmente na Síria e levada até a Península Ibérica (HOURANI, 2006). Também surgiu, nesse período, a necessidade higiênica da prática da ablução religiosa nas mesquitas, utilizando sistemas hídricos de retroalimentação (LYONS, 2011).

### Avanços e Desafios

A partir desses avanços científicos da sociedade islâmica medieval, é triste constatar que as sociedades do mundo islâmico moderno foram subjugadas por extremismos e dissensões internas, e que o Ocidente contribuiu tanto para o agravamento desse cenário quanto para o esquecimento das contribuições do cientificismo islâmico para as sociedades antigas. Nesse sentido, este trabalho visa explorar algumas dessas contribuições no campo da gestão de recursos hídricos e engenharia sanitária, discutindo como essas técnicas, há muito introduzidas e utilizadas no Ocidente, foram esquecidas ou ignoradas em favor de novas tecnologias, mais ou menos ambientalmente eficazes.

### Materiais e Métodos

Para realizar esta pesquisa, foi necessária a busca em fontes alternativas às bases de dados acadêmicas convencionais. Há uma grande deficiência de materiais em língua portuguesa sobre o assunto de forma específica. Predominam artigos de fontes islâmicas, e, no caso das fontes em português, artigos e teses escritas em Portugal e Espanha, onde a presença islâmica foi predominante. Contudo, há pouco enfoque nos sistemas de gestão em si, e mais nas questões de natureza histórico-política.

O presente trabalho foi concebido devido à escassez de materiais didáticos e históricos que abordem de maneira abrangente o cientificismo islâmico e seus progressos na engenharia, focando especificamente nos sistemas e seu funcionamento técnico. Devido a esse conjunto de fatores, foi necessário recorrer a obras de literatura acadêmica, artigos disponíveis em sites islâmicos e materiais de divulgação islâmica encontrados em mesquitas e salas de oração. Para evitar possíveis parcialidades no tratamento dessas questões, por parte dos autores árabes e muçulmanos, foram consultados autores ocidentais, e, através do cruzamento de dados, inseridas as informações. Autores como Albert Hourani, pesquisador britânico, e Jonathan Lyons, pesquisador da Universidade de Monash, na Austrália, foram os principais consultados.

A realização dessa pesquisa também revela um aspecto importante: a dificuldade de se encontrar estudiosos brasileiros. Mesmo em um contexto de fácil acesso à informação via internet, o material produzido no país resume-se, em sua maioria, a traduções de outros trabalhos. Nesse aspecto, é necessário um maior esforço acadêmico, tanto de muçulmanos quanto de não-muçulmanos, para que se possa ter um entendimento mais profundo dessa religião, suas peculiaridades e seus pensadores.

### Breve Histórico do Desenvolvimento da Ciência no Mundo Islâmico Medieval

No contexto do surgimento do islamismo, a Península Arábica era um ponto de confluência de diversas tribos e possuía um enorme fluxo cultural, advindo desde o Egito até a Síria e Constantinopla, especialmente por meio das caravanas de mercadores. Berço dos povos semitas, como os árabes (comumente chamados de ismaelitas) e os hebreus, a Arábia recebeu grande influência das civilizações egípcia, greco-romana-bizantina e pérsica, juntamente ao paganismo politeísta dos povos árabes e ao monoteísmo judaico, cristão e zoroastrista (HOURANI, 2006).

A ciência e a filosofia da época eram regidas pelos “princípios divinos” das sociedades teocráticas. Estudava-se principalmente aritmética, filosofia, alquimia, astronomia e medicina (MASON, 1964), pois um império próspero necessitava do conhecimento das ciências naturais para assegurar a lealdade e o bem-estar de seus cidadãos.

Diante desse complexo terreno multicultural e multiétnico, instituiu-se o primeiro califado islâmico após o falecimento do Profeta Muhammad, o Califado Rashidun, que acabou com a morte de Ali, sendo assim chamados de Califas Bem-Encaminhados (Rashidun). Durante esse período, instituiu-se o califado omíada em Damasco, caracterizado pela helenização cultural e pela preservação e divulgação de textos gregos, além da instituição de um observatório astronômico logo nos primeiros anos de reinado. Contudo, os omíadas foram subjugados pelos abássidas, cuja influência científica era mais focada no desenvolvimento religioso e na ciência persa, situando-se em Bagdá, lar posterior da Casa da Sabedoria, instituída pelo califa Al-Mamun (MASON, 1964; LYONS, 2011).

Devido a essa pluralidade de povos e ao alto intercâmbio cultural derivado da expansão islâmica, que se estendeu até os Pirineus, na Península Ibérica, e à Índia e às portas da China, o conhecimento científico avançou enormemente no período. Um hadith (dito ou feito do Profeta, narrado por seus familiares e companheiros) diz: “A busca do conhecimento é obrigatória para todos os muçulmanos” (Tirmidhi). Em outro hadith, o Profeta exorta os muçulmanos a "irem até mesmo à Índia" para sentar com diferentes professores em nome da busca pelo conhecimento, considerando "a tinta de um erudito mais preciosa do que o sangue de um mártir". Esse sentimento ávido por conhecimento, como uma forma de entender a criação divina, fez com que ao longo dos séculos os islâmicos traduzissem, estudassem e levassem para o mundo textos de filosofia grega, tratados de matemática védica, alquimia e geografia, além de desenvolver estudos próprios, muitos baseados nos textos corânicos (LYONS, 2011).

Dessas tradições culturais e religiosas, surgiram complexas obras de engenharia para atender às necessidades dos crentes, desde a ablução antes da oração até a irrigação para plantio. Entre os engenheiros mais célebres, destaca-se Badi'al-Zaman Abū al-'Izz ibn Ismā'īl ibn al-Razāz al-Jazarī (1136–1206), mais conhecido como Al-Jazari, autor da obra “O Livro do Conhecimento de Dispositivos Mecânicos Engenhosos”, onde enumera inúmeros dispositivos mecânicos e hidráulicos. Também é considerado o pai da robótica, devido à sua invenção de um robô humanoide programável, um autômato (LYONS, 2011; AL-HASSANI, ?). Segundo o historiador Donald R. Hill, “o impacto das invenções de al-Jazari ainda é sentido na moderna engenharia mecânica contemporânea” (HILL apud AL-HASSANI, ?). Algumas de suas contribuições serão discutidas mais adiante.

### Gestão de Águas no Mundo Islâmico

Diante dos inúmeros avanços tecnológicos nas áreas de arquitetura, engenharia civil e sanitária, e medicina, a saúde pública obteve grandes avanços. Sociedades como a romana já possuíam sistemas de água canalizada, banhos públicos e termas. Os árabes, por outro lado, viviam em torno de oásis, no deserto, e nas montanhas, próximos às nascentes e nas margens dos rios, onde praticavam principalmente agricultura de subsistência (HOURANI, 2006). Não obstante, as primeiras grandes civilizações do passado surgiram nessa região, apelidada de Crescente Fértil.

Diante dessa relação quase sagrada com os recursos hídricos e da necessidade de purificação antes da reza, a sociedade muçulmana nascente canalizou oásis e poços. Segundo o Alcorão: “Ó fiéis, sempre que vos dispuserdes a observar a oração, lavai o rosto, as mãos e os antebraços até aos cotovelos; esfregai a cabeça com as mãos molhadas e lavai os pés até os tornozelos. E, quando estiverdes polutos, higienizai-vos; porém, se estiverdes enfermos ou em viagem, ou se vierdes de lugar escuso ou tiverdes tocado as mulheres, sem encontrardes água, servi-vos do tayamum com terra limpa, e esfregai com ela os vossos rostos e mãos. Deus não deseja impor-vos carga alguma; porém, se quer purificar-vos e agraciar-vos, é para que Lhe agradeçais.” (Alcorão, 5:6)

Nesse sentido, a canalização dos recursos hídricos e sua gestão se deram através de barreiras, aquedutos, sistemas de retroalimentação, canais subterrâneos e rodas d'água. Abaixo seguem alguns exemplos:

1. Qanat (canal subterrâneo)

Segundo a Enciclopédia Britânica, um qanat é um antigo tipo de sistema de abastecimento de água, desenvolvido e ainda usado em regiões áridas do mundo. Um qanat utiliza fontes de água subterrâneas nas montanhas, canalizando a descida de água através de uma série de túneis levemente inclinados, frequentemente com vários quilômetros de extensão, para os locais onde é necessária irrigação e uso doméstico (Britannica).

Surgido inicialmente nas regiões áridas da Pérsia, o qanat foi amplamente difundido e aperfeiçoado pelos muçulmanos, sendo levado até as regiões áridas do Iraque (HOURANI, 2006), além do norte da África, Sicília, Espanha e Ilhas Canárias. O funcionamento do qanat, descrito por Muhamad Karaji, erudito persa do século X, consiste em um túnel escavado através do uso de um molinete, que retira os sedimentos. Um canal é então construído, com uma pequena declividade, onde um eixo motriz é afundado no aquífero, e em sua extensão, que pode ter quilômetros, são construídos poços alimentados por túneis subterrâneos. Esses qanats levavam água para áreas de plantio.

Na figura abaixo, representa-se um esquema em vista lateral de um qanat, composto pelas seguintes partes:

1. Parte do túnel de infiltração

2. Parte do túnel de transporte de água

3. Canal aberto

4. Eixos verticais

5. Pequeno lago de armazenagem

6. Área de irrigação

7. Areia e cascalho

8. Camadas de solo

9. Superfície do lençol freático

### 2) Nora (Roda d’Água)

Originalmente chamada em árabe de noria ou na’ura, a roda d’água é um sistema de gestão de água para plantio, introduzido na Europa através do domínio islâmico sobre a Sicília e a Península Ibérica (HOURANI, 2006). Este complexo sistema de captação de água de poços pode ser utilizado tanto para geração de energia quanto para a moagem de grãos (HENRY, 2010, 2011, 2013).

O sistema consiste em uma roda com alcatruzes em sua extensão, ligada a um eixo vertical por uma haste horizontal, a qual acopla um par de rodas dentadas. A nora, por vezes, utiliza tração animal, como nos processos de moagem de grãos. No que diz respeito à retirada de água dos poços, o sistema de alcatruzes busca água no fundo do poço e a deposita em um tanque, para regar as hortas.

### 3) As Contribuições de Al-Jazari

Al-Jazari, como mencionado anteriormente, foi um dos maiores engenheiros do período islâmico. Suas contribuições para os sistemas de manejo de águas incluem:

#### a) A Bomba Recíproca

Composta por dois cilindros de cobre laterais, a bomba recíproca possui pistões em seu interior, conectados por uma haste. Esta haste é presa a um eixo conectado a uma roda de pás giratória, semelhante à nora. Podendo ser acionada por tração animal ou pela força hidráulica, as pás funcionam por retroalimentação, e os pistões trabalham na sucção da água de poços (AL-HASSANI, ?).

#### b) A Máquina de Elevação de Água

Descrita também na obra de Al-Jazari, a máquina de elevação de água apresenta um funcionamento mais complexo, utilizando uma roda que leva a água até um sistema de recipientes, semelhante à nora. A rotação ocasionada pelo sistema aciona pares de rodas dentadas, que auxiliam no direcionamento da água para um aqueduto, de onde será bombeada para uso no plantio (AL-HASSANI, ?).

O Compêndio de Al-Jazari descreve ainda outras três máquinas de captação de água, além de relógios d’água, fontes que mudam a forma do jato d’água automaticamente, e até mesmo sistemas de descanso de vinho (LYONS, 2011; AL-HASSANI). Outros engenheiros também se destacaram nos sistemas de captação de água, como Taq Al-Din, que desenvolveu um sistema de bomba semelhante ao de Al-Jazari, mas com seis cilindros. Os sistemas desse engenheiro eram utilizados não apenas no plantio, mas também no abastecimento de água em mesquitas e prédios públicos, sendo levados até a Península Ibérica pela expansão islâmica na região (HOURANI, 2006; LYONS, 2011; AL-HASSANI, ?).

### 4) Represas e Reservatórios

O processo de represar água não é necessariamente advindo do período de expansão do islamismo, pois romanos, fenícios e egípcios já utilizavam técnicas de barragens em rios. O diferencial do processo islâmico reside na expansão desses sistemas para o Norte da África, como no caso das Represas de Qayrawan, na Tunísia. Este sistema foi instaurado pela dinastia islâmica dos aglábidas, que dominaram a região da Tunísia e da Sicília entre os séculos IX e X (HOURANI, 2006). Considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, o complexo sistema de represas incluía até três reservatórios para decantação, armazenamento e escoamento para irrigação, além de fornecer energia motriz para moinhos (FTSC Limited).

### Conclusões

O pensamento e a pesquisa científica no mundo muçulmano medieval constituem uma rica herança de um conjunto de civilizações do Oriente e do Ocidente. Tal intercâmbio de conhecimentos auxiliou o Ocidente Medieval a alcançar o Renascimento Cultural e Científico no século XIV, além das Grandes Navegações e a conquista das Índias pela circunavegação.

Os avanços na engenharia, na matemática, na astronomia e a difusão de técnicas agrícolas, não necessariamente advindas de pensadores islâmicos, mas amplamente difundidas em língua árabe — a língua do comércio e da religião — promoveram inovações tanto dentro quanto fora do mundo muçulmano, desde autômatos até sistemas avançados de captação de água. Portanto, a necessidade de gestão de recursos hídricos, seja para plantio ou para questões sanitárias, levou a civilização islâmica a estudar, preservar e inovar tecnologias de uso dos recursos hídricos. Embora sejam pouco estudados e conhecidos no mundo moderno, os pensadores do mundo árabe-islâmico medieval deixaram profundas marcas na sociedade de sua época e uma rica herança civilizacional para a nossa era.

### Referências Bibliográficas

- EL-HAYEK, Samir. O Significado dos versículos do Alcorão Sagrado com comentários. Tradução Samir el Hayek. São Paulo: MaslaM Editora Jornalística Ltda, 2001.

- HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Albert Hourani/tradução Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

- LYONS, Jonathan. A Casa da Sabedoria: como a valorização do conhecimento pelos árabes transformou a civilização ocidental. Jonathan Lyons/tradução Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

- AL-HASSANI, Salim. 800 Years Later: In Memory of Al-Jazari, A Genius Mechanical Engineer. Muslim Heritage. Disponível em: <http://www.muslimheritage.com/article/800-years-later-memory-al-jazari-genius-mechanical-engineer>. Acesso em: 07 jun. 2018.

- AL-HASSANI, Salim. The Machines of Al-Jazari and Taqi Al-Din. Muslim Heritage. Disponível em: <http://www.muslimheritage.com/article/machines-al-jazari-and-taqi-al-din>. Acesso em: 07 jun. 2018.

- FSTC Limited. Water Management and Hydraulic Technology, Muslim Heritage. Disponível em: <http://muslimheritage.com/article/water-management-and-hydraulic-technology>. Acesso em: 07 jun. 2018.

- DESCONHECIDO. Qanats. Water History. Disponível em: <http://www.waterhistory.org/histories/qanats/>. Acesso em: 07 jun. 2018.

- ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA. Qanats. Disponível em: <https://www.britannica.com/technology/qanat>. Acesso em: 07 jun. 2018.

- UNESCO. The Persian Qanat. UNESCO World Heritage List. Disponível em: <https://whc.unesco.org/en/list/1506>. Acesso em: 07 jun. 2018.

- FOLHAS, João Pedro Bento. Engenhos da Quinta dos Salgueiros. Disponível em: <https://www.uc.pt/iii/romuloccv/files/concursos/Engenhos_da_Quinta_dos_Salgueiros.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2018.